Chegamos a mais de um ano desde a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) que elevou o estado de contaminação pelo novo vírus Sars-Cov-2 ao estágio de pandemia. E nesse contexto, além da crise sanitária, o Brasil está no epicentro de uma crise social e política. Não é por menos. A ausência de coordenação do governo federal é lamentável e isso fica evidente no número de contaminados e mortos pela Covid-19.
Nesse cenário – de calamidade sanitária, social e política – e mesmo após as recomendações emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o objetivo de reduzir de forma efetiva os índices de superlotação do sistema carcerário e evitar contaminações em massa nas unidades prisionais (Recomendação n. 62 de 17 de março de 2020), o Brasil apresenta a marca de 687,5 mil pessoas presas no ano de 2021, com um total de 247 mil pessoas acima da capacidade do sistema.
Seria desnecessário insistir que as unidades prisionais brasileiras são verdadeiros polos de disseminação potencial do vírus Sars-CoV-2, particularmente no país que possui hoje o segundo maior índice de transmissão do vírus em todo o planeta. Espaços de aglomeração drástica, ventilação nula, insalubridade completa e atendimento médico precário – quando existente –, os estabelecimentos carcerários espalhados pelo Brasil figuram como modelo antitético a qualquer concepção de cuidado sanitário, expondo centenas de milhares de pessoas às ameaças implicadas pela contaminação descontrolada.
Tampouco seria preciso sinalizar que os riscos representados por tal estado de coisas não se limitam à circunscrição espacial e arquitetônica do universo intramuros, dado o trânsito permanente de entrada e saída de funcionários/as que atuam no vasto sistema penitenciário brasileiro. Atualmente, são cerca de 85 mil policiais penais trabalhando nas 2.867 unidades que constituem o parque carcerário do país, atuando como potenciais vetores de propagação da doença, por dentro e para fora dos muros.
Entretanto, a manutenção de quase 250 mil pessoas presas além da capacidade do sistema em um cenário de agravamento contínuo da pandemia no Brasil nos obriga a reiterar esse conjunto de implicações e sublinhar o ímpeto punitivo das autoridades judiciais e políticas responsáveis pela execução penal no país, em detrimento das preocupações concernentes à preservação da saúde e da vida.
A orientação jurídico-política preponderante entre magistrados/as, promotores/as e autoridades penitenciárias de um modo geral permanece centrada no encarceramento obstinado de uma seleta (e ampla) parcela da população (via de regra, jovens, pobres, negros e com baixa ou nenhuma escolarização), mesmo que isso implique em evidente risco de vida às pessoas presas e à sociedade como um todo.
O CNJ tem procurado acompanhar os casos de contaminação e mortes pelo coronavírus em contextos de privação de liberdade, que demonstram um aumento ininterrupto desde março de 2020. Com o mesmo propósito, o Monitor da Violência apresenta uma sistematização dos dados referentes à Covid-19 nas prisões, coletados junto às secretarias estaduais de Justiça e Administração Penitenciária. Segundo o Monitor, atualmente são 437 óbitos e 77.608 casos da doença entre presos/as e servidores/as dos sistemas penitenciários. Não há informações, contudo, sobre infectados e mortos em delegacias ou repartições policiais.
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Subnotificação/falta de transparência
Todavia, mesmo os dados coletados pelo G1 nos parecem tímidos diante de levantamentos realizados a partir de iniciativas de pesquisadores/as e organizações da sociedade civil em todo o país. Diversas entidades de defesa dos direitos de presos/as denunciam procedimentos deliberados de ocultação de dados sobre óbitos e contaminações no sistema prisional.
O observatório Infovírus aponta uma série de inconsistências e desatualizações das informações oficiais referentes à Covid-19 nas prisões de diferentes unidades federativas. Familiares de pessoas presas chegam a relatar ameaças e constrangimentos a presos/as que apresentam sintomas, com o propósito de evitar denúncias e registros de contaminação. A Pastoral Carcerária registrou um aumento de mais de 80% nas denúncias de violações de direitos de presos/as entre 2020 e 2021, incluindo tortura, agressões e falta de assistência médica.
Ao que indicam as pesquisas, ao largo da promoção de medidas efetivas de proteção à saúde das pessoas presas, a administração da pandemia no sistema penitenciário brasileiro se mantém centrada na omissão de dados, no silenciamento de denúncias e na intensificação da violência carcerária.
Chama a atenção, além do mais, a ausência de uma política articulada entre o Ministério da Justiça, o CNJ, os tribunais de Justiça e os Executivos estaduais para conter a proliferação da Covid-19 nos presídios – o que só seria possível se as prisões fossem esvaziadas. Isso porque, como é notório, as unidades prisionais brasileiras são espaços completamente vazios de direitos, marcados pela mais radical precariedade. Não há água em quantidade suficiente, materiais básicos de higiene e limpeza e, muito menos, equipes de saúde suficientes para garantir, minimamente, a integridade física das pessoas privadas de liberdade. Sem citar, é claro, infestações de ratos, baratas e insetos transmissores de doenças, que convivem diuturnamente com essas pessoas.
Em contextos como esse, a permanência do quadro de superlotação verificado pelo Monitor da Violência faz dos espaços prisionais ambientes propícios à propagação da Covid-19. A combinação nefasta entre precariedade e superpopulação ameaça as mais de 693 mil vidas encarceradas nas penitenciárias, centros de detenção provisória, unidades prisionais de regime semiaberto, hospitais de custódia e carceragens de repartições policiais pulverizadas pelo país. Além disso, também ameaça todos/as os/as familiares e todos/as os/as policias penais e demais funcionários que compõem a gestão carcerária brasileira.
Vale frisar também o caráter enganoso de uma ênfase analítica frequente, centrada no déficit de vagas, cuja suposta solução aponta para a necessidade de construção de mais prisões. A observação empírica demonstra que a ampliação do número de vagas e a construção de mais prisões têm como efeito invariável o crescimento dos índices de encarceramento. Longe de repercutir na diminuição das taxas de superlotação, a ampliação do parque carcerário tem por resultado a prisão de mais e mais pessoas, retroalimentando os conflitos provocados pelo adensamento das fileiras faccionais e toda sorte de marginalizações decorrentes da experiência carcerária.
Nesse contexto, a queda verificada pelo Monitor da Violência do número absoluto de pessoas privadas de liberdade no país é ínfima diante da urgência de um processo expressivo e imediato de desencarceramento – de pessoas jovens, negras, desescolarizadas, que, na maioria das vezes, estão encarceradas por crimes patrimoniais e relacionados à Lei de Drogas. Reitera-se que ausência de política integrada entre os diversos setores responsáveis por essa população, que deveria ser articulada pelo Ministério da Justiça, apenas confirma o que já sabemos: não existe preocupação nenhuma com a situação em que brasileiros e brasileiras se encontram em meio à calamidade social, política e sanitária – estejam eles/as privados/as de liberdade ou não.
Ricardo Campello é pesquisador do Programa de Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, com bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
Mariana Chies-Santos é pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, com bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
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