‘Combo da morte’: entenda por que 5 projetos de lei no Congresso são apontados como ameaças ao meio ambiente, quilombolas e indígenas

Projetos ganharam força desde o início do governo de Jair Bolsonaro.

Homens indígenas protestam em Brasília em 24 de agosto contra o marco temporal. — Foto: Carolina Cruz/ G1

Homens indígenas protestam em Brasília em 24 de agosto contra o marco temporal. — Foto: Carolina Cruz/ G1

O futuro dos povos tradicionais e do meio ambiente no Brasil está sendo decidido e votado em Brasília. Nesta quarta-feira (25), deve ser retomada no Supremo Tribunal Federal (STF) a análise de uma ação que servirá de diretriz para as mais de 300 terras indígenas ainda em processos de demarcação no país, que são históricos e lentos.

Mas além do julgamento do “marco temporal” no STF, especialistas voltam suas atenções para pelo menos cinco projetos de lei (PL) no Congresso que alteram as regras de proteção de territórios e povos indígenas, favorecem a formação de latifúndios em terras públicas e minam a reforma agrária.

Todos esses projetos vêm ganhando força desde o início do governo de Jair Bolsonaro, que será o primeiro governo, desde a redemocratização do Brasil, a não demarcar nenhuma terra indígena.

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O coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Raoni Rajão, explica que os projetos estão relacionados e devem ser analisados como um combo – ou “death combo” (combo da morte), como tem sido chamado.

“O ‘death combo’ aparece para enfraquecer a legislação ambiental e legalizar a privatização das terras amazônicas e terras públicas, que são um patrimônio nosso. É um verdadeiro pacotão para roubar a Amazônia do povo brasileiro”, explica Rajão.

São os projetos de lei que integram o “combo da morte” da área ambiental (entenda cada projeto abaixo):

  • PL nº490/2007: restringe a demarcação de terras indígenas
  • PL nº191/2020: libera a mineração em terras indígenas
  • PL nº 3.729/2004: flexibiliza e/ou extingue o licenciamento ambiental de obras e empreendimentos
  • PL nº 510/2021: permite a legalização de terras públicas invadidas até 2014 e a titulação de áreas consideradas latifúndios
  • PL nº 4843/2019: permite que o setor privado se aproprie de terras destinadas à reforma agrária e a titulação de áreas consideradas latifúndios

Veja abaixo cada um dos projetos de lei em detalhes.

Indígenas estendem faixa pedindo impeachment, em frente ao Congresso Nacional, em BRasília — Foto: Carolina Cruz/ G1

Indígenas estendem faixa pedindo impeachment, em frente ao Congresso Nacional, em BRasília — Foto: Carolina Cruz/ G1

PL nº490/2007: o fim da demarcação de terras indígenas

  • O que prevê: institui o ‘marco temporal’, determinando que teriam direito às suas terras ancestrais os povos que as estivessem ocupando no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988; altera o Estatuto do Índio para permitir, segundo o texto, um “contrato de cooperação entre índios e não índios”, para que estes possam realizar atividades econômicas em terras indígenas; permite que não indígenas tenham contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”
  • Status: em 29 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, presidida pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), entendeu que o texto do PL é Constitucional. Agora, ele vai para votação no plenário.
  • Contexto: foi originalmente proposto em 2007, mas rejeitado na Comissão de Direitos Humanos em 2009. Em 2018, foi arquivado, mas foi ressuscitada durante a campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, que prometeu acabar com “reserva indígena no Brasil”. (veja o vídeo abaixo)
 

A demarcação de TI é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, que estabelece aos índios o chamado “direito originário” sobre as suas terras ancestrais. Isso quer dizer que os índios são considerados por lei os primeiros e naturais donos desse território, sendo obrigação da União demarcar todas as terras ocupadas originariamente por esses povos.

O PL 490, contudo, prevê que somente os povos que estavam fisicamente em suas terras ancestrais no dia da promulgação da Constituição de 1988 teriam direito sobre as terras. Caso contrário, a União poderá retomá-las, desconsiderando os povos que foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem.

“Temos povos que foram expulsos das suas terras ancestrais e lutam há décadas para retornarem para esses locais. Com o marco temporal, as autoridades estão dizendo: ‘desconsiderem o direito desses povos de retornarem para suas terras ancestrais, vamos privatizá-las!’ Ou seja, o PL dá a preferência do território indígena para os que estão invadindo a área pública”, diz Rajão.

Além disso, Rajão explica que o PL 490 também desconsidera o trecho da Constituição que diz que a União teria cinco anos, a contar de 1988, para concluir a demarcação de todas as terras indígenas do país.

“O processo de demarcação das terras indígenas deveria ter terminado em 1993. A União não conseguiu até hoje conclui-lo e temos mais de 300 TI em processo de demarcação, e isso não inclui os índios isolados no coração da floresta, já que muitos nem conhecemos”, explica o professor da UFMG.

Apenas 13.8% de todas as terras do país são reservados aos povos indígenas, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), o equivalente a 722 terras indígenas. Dessas, somente 487 foram homologadas (quando o processo de demarcação foi concluído) desde 1988

Entenda o PL 490, projeto que muda a demarcação de terras indígenas

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Além de proteger física e culturalmente os povos originários, a demarcação de terras indígenas é um dos principais impeditivos para a privatização das terras públicas no país, uma vez que TIs não podem ter titularidade.

PL nº191/2020: exploração e mineração em terras indígenas

  • O que prevê: libera a exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração, abrindo espaço para realização de pesquisa e de lavra de recursos minerais, inclusive de petróleo e gás natural, e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas.
  • Contexto: de autoria do próprio Poder Executivo, Bolsonaro assinou o projeto em fevereiro de 2020. Depois disso, o texto seguiu para análise no Congresso Nacional.
  • Status: parado na mesa diretora da Câmara dos Deputados aguardando votação.

Apesar de administrativamente as terras indígenas serem consideradas de propriedade da União, a Constituição Federal determina o uso “exclusivo” dos indígenas das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas TIs.

Por isso, segundo a especialista-sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, o PL 191 é uma saída encontrada pela bancada ruralista para favorecer invasores que já se apossaram de trechos de terras indígenas e, agora, buscam legalizar suas atividades ilegais.

“As Terras Indígenas já estão em processo de invasão por terceiros que aumentou significativamente nos últimos dois anos. Das 330 TIs do bioma Amazônia 255 já tiveram parte de seu território capturado por entes privados por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que significa uma área de 3,5 milhões de hectares”, diz Araújo.

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PL nº 3.729/2004: Flexibilização do licenciamento ambiental

  • O que prevê: flexibiliza o licenciamento ambiental para novos empreendimentos e obras; prevê a renovação automática de quaisquer tipos de licenças ambientais, bastando um documento autodeclaratório do empreendedor; isenta de licença ambiental 14 setores, entre eles a agropecuária extensiva; deixa de exigir das obras a análise de impacto e adoção de medidas para prevenir danos sobre terras indígenas não demarcadas e sobre os territórios quilombolas ainda não titulados; deixa de exigir análise de impactos indiretos sobre Unidades de Conservação.
  • Contextualização: foi apresentado em 2004 pelo então deputado federal Luciano Zica (PT) e propunha uma lei geral que regulasse os impactos ambientais de obras de grande porte. O texto original tramitou por dezessete anos no Congresso até que, este ano, o deputado Nery Geller (PP) refez o texto para propor a flexibilização e extinção do licenciamento.
  • Status: o texto do PL repaginado por Geller já foi aprovado, sob relatoria da senadora Katia Abreu (PP), agora aguarda apreciação pelo Senado Federal.
 

Apelidado de “mãe de todas as boiadas”, o PL 3.729 acabará, em inúmeras situações, com o Licenciamento Ambiental, principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, destinado ao controle prévio das formas de degradação ao meio ambiente causadas por atividades humanas.

A Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) destaca que, além da dispensa de licenciamento para obras, o projeto também prevê a dispensa para o cultivo de espécies de interesse agrícola e para a pecuária extensiva, semi-intensiva e intensiva de pequeno porte.

“Tais atividades possuem grande impacto na disponibilidade hídrica nos locais em que se instalam, em função dos sistemas de irrigação necessários, além de terem considerável impacto climático, sendo o setor agropecuário responsável por 28% das emissões de gases de efeito estufa – GEE no país (…) Tais impactos impõem a avaliação individualizada e, eventualmente, a determinação de implementação de medidas de compensação e mitigação que só podem ser definidas por meio do processo de licenciamento ambiental”, diz a Abrampa.

Novo projeto de licenciamento ambiental segue para para debate no Senado

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PL nº 510/2021: anistia ocupação ilegal de terras públicas

  • O que prevê: anistia o crime de invasão de terra pública para quem ocupou entre o final de 2011 e 2014; permite que áreas de até 2.500 hectares sejam regularizadas sem que passem por vistoria.
  • Contexto: o projeto é de autoria do senador Irajá Abreu (PSD). Atualmente, existe uma consulta pública no site do Senado sobre o PL.
  • Status: em tramitação no Senado.
 

O projeto vai anistiar desmatamentos recentes e aumentar a expectativa de regularização de novas invasões em terras públicas, como terras indígenas não homologadas, unidades de conservação que possuem processos legislativos de revisão de limites e territórios quilombolas não titulados.

Um estudo da UFMG sobre os impactos do PL 510 – caso seja aprovado – mostra que o projeto tem potencial para abrir caminho para a grilagem de 43 milhões de hectares de terras públicas, inclusive dentro de florestas na Amazônia, já que servirá como um incentivo às invasões dessas áreas.

“O PL [510] mostra que o grande negócio do desmatamento na Amazônia hoje não é a produção de alimentos, mas a aquisição de terra pública; é a privatização de um bem público, especulação e enriquecimento de setores privado”, diz Rajão, um dos autores do estudo.

Um nota técnica do Imazon também alerta que, nos casos em que não houve autuação ambiental, o PL permite titular áreas desmatadas ilegalmente, assim como permite que um mesmo invasor ocupe outras terras públicas, “pois autoriza nova titulação a quem foi beneficiado com a regularização e vendeu a área há mais de dez anos”, diz a nota.

O Imazon estima que o PL 510 ameaça pelo menos 19,6 milhões de hectares de áreas federais não destinadas na Amazônia, que poderão ser ocupadas e desmatadas na expectativa de regularização.

“Se isso ocorrer, haverá dois grandes prejuízos para a sociedade brasileira: desmatamento adicional entre 11 mil km² e 16 mil km² até 2027; perda de arrecadação entre R$ 62 milhões e R$ 88 milhões pela venda de terra pública abaixo do valor de mercado (conforme determina a lei)”, calcula o Imazon.

PL nº 4348/2019: privatiza terras destinadas à reforma agrária

  • O que prevê: permite a regularização fundiária de ocupações em terras da União anteriores a 2008 que deveriam ser destinadas aos assentados da reforma agrária, alterando a lei atual, que permite a regularização de assentamentos dessa natureza criados até o dia 10 de outubro de 1985.
  • Contexto: foi apresentado em 2019 pelo Deputado Federal Silas Câmara (Republicanos)
  • Status: texto já foi aprovado no Senado em abril, agora segue para sanção presidencial.

Entidades alertam que o projeto permite que posseiros irregulares – diferente dos que foram originalmente assentados – de lotes de assentamentos da reforma agrária ganhem o título de propriedade das terras ocupadas até outubro de 2008.

Além de estender a data de ocupação em mais de 20 anos, esses ocupantes irregulares poderão legalizar áreas de até 2,5 mil hectares, muito superiores ao limite atual, de pouco mais de 440 hectares.

Com isso, de acordo com a assessora de Políticas Públicas do Greenpeace, Luiza Lima, o projeto legaliza a grilagem de terras que deveriam integrar a reforma agrária, ameaçando áreas da agricultura familiar, regularizando ocupações ilegais e estimulando a violência nas comunidades rurais, mas com um falso argumento de promoção da justiça social no campo.

“O PL 4348/2019 abre caminho para que ocupações ilegais em assentamentos de até 2,5 mil hectares sejam regularizadas, aumentando a concentração de terras dentro de assentamentos da reforma agrária e legitimando a grilagem de terras, o desmatamento ilegal e a violência no campo, inerentes a este processo [de grilagem]”, explica Lima.

Mais ameaças

Arco-íris completou a paisagem no Parque Nacional do Iguaçu — Foto: Edison Emerson/Cataratas S.A

Arco-íris completou a paisagem no Parque Nacional do Iguaçu — Foto: Edison Emerson/Cataratas S.A

Além destas propostas, a Câmara poderá votar, ainda em agosto ,o PL 2.510/2019, do deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), e, no plenário do Senado, o PL 1.869/2021, do senador Jorginho Mello (PL-SC). Ambos têm o objetivo de reduzir ou até a eliminar a vegetação de beira de rio em cidades, faixas chamadas de Áreas de Preservação Permanente (APPs), fundamentais para o controle de inundações, assoreamento, erosão e poluição.

Há, ainda, o PL 984/2019, do deputado Vermelho (PSD-PR), que pretende cortar com uma rodovia o Parque Nacional do Iguaçu, Patrimônio Natural da Humanidade e última grande reserva da Mata Atlântica do interior do Brasil.

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