Arquitetura hostil a moradores de rua e campanhas contra doação de esmolas se espalham pelo país e viram tema de projeto de lei discutido no Congresso Nacional, que leva o nome do religioso paulista.
A aracnofobia e a homofobia dão nome a medos e ódios muito difundidos na história da humanidade. A aversão à pobreza também é histórica, mas só ganhou nome próprio há cerca 20 anos. De origem grega, a aporofobia se refere ao medo e à rejeição aos pobres.
A palavra passou a ser difundida recentemente no Brasil com uma campanha do padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, de São Paulo, contra as cidades que a praticam. Ele conta que recebeu centenas de imagens de aporofobia no país.
Um cartaz da Prefeitura de Pato de Minas, por exemplo, em que se lê “Não dê esmola, dê cidadania” , levou uma tarja preta do padre Júlio: aporofobia. Foto de grades rentes a um imóvel comercial em Salvador, na Bahia, para impedir a dormida de moradores de rua, também foi marcada com a tarja pelo religioso. Bem como a imagem de um viaduto com pedras em Santo André, no ABC Paulista.
Padre Júlio Lancellotti removeu pedras sob um dos viadutos de SP. — Foto: Vivian Reis/G1
Em fevereiro, padre Júlio marretou os blocos de paralelepípedos instalados pela gestão do então prefeito Bruno Covas (PSDB) na parte inferior de viadutos na Zona Leste da capital.
Por isso e por toda a luta ao lado dos pobres em São Paulo, um projeto de lei que proíbe técnicas de construção hostil e restringe o uso do espaço público leva o seu nome. A Comissão de Desenvolvimento Urbano, da Câmara dos Deputados, aprovou em, novembro, o projeto de lei “Padre Júlio Lancellotti”.
O texto ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo plenário para ser aprovado.
Denúncia do padre Júlio Lancellotti em Salvador (BA) e Pato de Minas (MG). — Foto: Reprodução/Instagram
Origem da palavra
Situações muitas vezes classificadas como “racismo” ou “xenofobia” deveriam ter, na verdade, outro nome: “aporofobia”. Este é o argumento da inventora da palavra, a filósofa espanhola Adela Cortina, que a criou nos anos 1990. De acordo com ela, há casos em que o ódio a imigrantes ou refugiados, por exemplo, não decorre da condição de estrangeiros, mas, sim, da situação de miséria em que essas pessoas se encontram.
O termo – eleito a palavra do ano de 2017 pela Fundación del Español Urgente (Fundéu BBVA) – foi usado em vários dos seus artigos jornalísticos e em livros.
“Não rejeitamos estrangeiros se forem turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se forem pobres”, disse em entrevista à BBC.
A filósofa espanhola Adela Cortina, que cunhou a palavra aporofobia. — Foto: Divulgação/Fundacion Conexus/ES
Na mesma entrevista, Adela Cortina afirmou que criou o termo justamente para “dar visibilidade a essa patologia social que existe no mundo todo”.
A filósofa afirma que “é comum tratar bem quem pode nos fazer favor ou dar algo em troca e abandonar aqueles que não podem nos dar nada disso”.
Para o padre Júlio, “a grande proposta que a Adelia Cortina coloca é sair da hostilidade para a hospitalidade, em relação a imigrantes, migrantes e refugiados. Ela coloca bastante a questão da Europa em relação aos refugiados. Aqui no Brasil a população de rua são refugiados urbanos, porque ninguém os quer. Eles incomodam em todo lugar. Eles são pressionados a viver apenas em campos de refugiados, que nós chamamos de nomes bonitos, como ‘Centros de Acolhida’”.
Brasil
Nas cidades brasileiras, a aporofobia aparece principalmente no uso de grades, lanças e muros para impedir a aproximação de moradores de rua de residências e estabelecimentos.
“Com o aumento da miserabilidade e da pobreza na população, o número da população de rua também aumenta. E proporcionalmente aumenta a rejeição. Com isso cresce também a hostilidade, o rechaço e essa arquitetura hostil”, diz Júlio Lancellotti.
“Nós não estamos querendo que as pessoas morem embaixo dos viadutos. Mas que nós não fiquemos apenas na hostilidade e no afastamento dessas pessoas. Porque essa é uma linguagem simbólica. (…) É importante acender essa questão pra dizer: nós vamos hostilizar ou vamos ser hospitaleiros? Nós vamos acolher para ajudar a transformar”, afirmou o religioso.
Cidade com arquitetura hostil para espantar moradores de rua ao redor do país, postadas nas redes socais pelo padre Júlio Lancellotti. — Foto: Reprodução/Redes Sociais
Outra forma de aporofobia, segundo o padre, está na prática de muitas prefeituras de transferir os moradores de rua para outras cidades forçadamente.
No mês de julho, o g1 mostrou que o prefeito de Monte Mor, no interior paulista, foi alvo de investigação ao transferir pessoas em situação de rua para outros municípios.
Os sem-teto, deixados em Boituva (SP), procuraram a Polícia Civil e relataram que foram despejados à força, até mesmo com ameaças de uso de spray de pimenta. Em um vídeo, o prefeito Edivaldo Antônio Brischi (PTB) afirmou que “vai mostrar como se governa” e não pode “ver a cidade virar um lixo”.
Para o padre Júlio Lancellotti, “ao explicitar essa aporofobia através de obras e ações, o poder público sinaliza que essas pessoas são indesejáveis”.
“Nós temos que buscar respostas de locação social, de moradia, possibilidade de trabalho e cuidados. O que nós precisamos é proteção social para poder subsistir. A população de rua não tem acesso à água potável. Você imagina o que é não ter acesso nem a isso?”, declarou o religioso.
Campanhas de municípios brasileiros contra a doação de esmolas para moradores de rua. — Foto: Reprodução/Redes Sociais
Outro aspecto público da aporofobia, segundo o padre, está nas campanhas que as prefeituras pelo país promovem para que as pessoas não deem esmola ou doações diretas aos mais pobres, alegando que isso alimentaria o “comodismo” e o “vício em viver nas ruas”.
“Ninguém pode acreditar que a população de rua aumenta porque aumentou as esmolas, que a esmola é tão rentável que mantém as pessoas na rua. Quem dá esmola é o poder público. O orçamento para a Saúde, a Habitação Pública e a Assistência Social que é uma esmola vergonhosa, que não consegue dar subsistência aos que mais precisam”, avalia.
“Eu não estou defendendo a esmola. A esmola é uma atitude sua, questão de consciência tua. E o estado não pode tutelar a sua consciência”, completou.
Padre Júlio Lancellotti fala sobre a arquitetura hostil aos pobres no Brasil
Porto Alegre
As postagens do padre Júlio já começaram a surtir efeito e, em Porto Alegre, a Caixa Econômica Federal retirou as pedras colocadas em frente a uma agência do banco, após denúncia feita por ele no Instagram.
“Isso está ajudando a colocar a nu uma coisa que está muito dentro de nós, que passou a ser banalizada. Alguns dizem: ‘Isso está aí há tantos anos…’ Não importa. A criminalização da pobreza não criminaliza os produtores da pobreza, apenas os pobres e empobrecidos”, declarou.
Pedras colocadas em frente a uma agência da Caixa em Porto Alegre e retirada após postagem do padre. — Foto: Reprodução/Redes Sociais
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