ENSAIO E GRAVAÇÃO COM JORGE BEN ANTES DE PEGAR O SÃO PAULO

As alusões a Jorge Ben Jor, à época apenas Jorge Ben, não são à toa, e você vai entender ao ler o depoimento de Zico. Depois de merecidas férias pós-Mundial, o Flamengo se reapresentou na Gávea em 13 de janeiro, exatamente um mês depois de colocar os ingleses do Liverpool na roda. Seriam apenas sete dias de preparação para o clássico com o São Paulo, bicampeão paulista e vice do Brasileiro. E, no meio desse intervalo, os rubro-negros ainda foram ao antigo Teatro Fênix, da TV Globo, para dançar e pular na gravação do especial “Energia” de Jorge Ben, que seria exibido no dia 12 do mês seguinte. Ou seja, apesar do animado show que curtiram, os jogadores se cansaram ainda mais.

– Considero um dos jogos mais importantes daquele ano, principalmente porque foi um negócio meio atípico o que aconteceu. A gente tinha que voltar das férias um mês após a final do Mundial. Marcaram esse jogo para o dia 20, e normalmente você precisaria de pelo menos 15 dias de treinamento para poder jogar. Era feriado, um dia especial no Rio, e a torcida queria comemorar o Mundial porque não teve festa aqui. De Tóquio, cada um foi para um lado. Poucos voltaram para o Brasil de imediato.

– Chegamos a um acordo e voltamos. No meio da semana, teve um show do Jorge Ben Jor na TV Globo onde o encerramento era com o time todo no palco. Como era gravação, demorou pra cacete, e a gente chegou tarde pra c… Foi numa quarta ou numa quinta-feira anterior ao jogo. Eu até levei as crianças ao ensaio. Como éramos os últimos a participar, atrasou a gravação e saímos tarde pra c… Ainda bem que o Bosco (Domingo Bosco, supervisor do Flamengo) separou um ônibus para voltarmos à concentração, onde tínhamos deixados o nossos carros – relembra Zico.

O Galinho, aliás, foi ao palco e, de afoxé americano na mão, participou das músicas “Para que Digladiar” e de “Domingo não passará”, a última composta por Jorge Ben especialmente para motivar o Flamengo a vencer o Vasco na decisão estadual de 1981. Depois de perder os dois primeiros jogos enquanto enfrentavam o luto pela recente morte de Cláudio Coutinho, responsável pelo florescer daquela geração, os rubro-negros chegaram ao título em 6 de dezembro de 81 com um 2 a 1 sobre os vascaínos, gols de Adílio e Nunes.

Zico aparece logo nos primeiros minutos do especial exibido pela TV Globo em 12 de fevereiro de 1982. Jorge Ben fala sobre o Galinho, detalha a final contra o Vasco de 81, elogia o desempenho do lateral Júnior no gogó e agradece aos jogadores que lá marcaram presença (veja no vídeo acima).

– O ensaio foi com o Zico, que magistralmente pegou o afoxé e nos acompanhou no chorinho que se chama “Para que digladiar”. Galinho, realmente você sabe… Eu rubro-negro, e o Flamengo precisando de um empate. Perdeu a primeira, perdeu a segunda, e eu disse: “Ai, meu Deus, não pode perder a terceira”. Aí nasceu o samba: “Mas de domingo não passará”. Aquele passe maravilhoso que você deu, aquela corrida sensacional do Júnior e aquele gol do Nunes mirabolante. A galera toda do Flamengo prestigiando. Tivemos o Tita de cameraman, o Júnior, maior lateral do mundo, e que sabe todas as minhas músicas. Muito obrigado!

PARTE FÍSICA ERA PREOCUPAÇÃO DE TODOS

Depois do baile nos 3 a 0 sobre o Liverpool e uma penca de títulos desde 1978, não havia dúvidas sobre o poderio técnico do Flamengo, mas a questão física exigia cuidados. Durante a semana que antecedeu o encontro com também estrelado time do São Paulo, Zico fez diversos alertas a respeito da forma dos rubro-negros. Apesar disso, apostava em um grande jogo sempre que se manifestara. Especialista, o preparador físico do Fla, José Roberto Francalacci, também avisou que faria de tudo para o time aguentar o duelo com o Tricolor. E, pasmem os senhores, há 40 anos cobrou um calendário “mais humano”.

– Depois de uma campanha estafante como a nossa, ano passado, e mais um mês de férias, nem mágico colocaria este time em forma em apenas sete dias. Serei obrigado a fazer um trabalho superimprovisado para permitir que os jogadores pelo menos possam correr os 90 minutos sem grandes riscos de distensão ou qualquer outro problema muscular. Só com estres treinos dá para exigir muito da rapaziada? É lógico que não. Por isso defendeu até a união de todos os preparadores físicos que trabalham no futebol para que, juntos, possamos lutar por um calendário mais humano – afirmou Francalacci em entrevista concedida em 12 de janeiro de 1982, um dia antes da reapresentação na Gávea.

Apesar da atenção especial à parte física, o técnico Paulo César Carpegiani deu declarações quase que diárias garantindo a vitória do Flamengo. Argumentava que o time campeão do mundo, apesar de num estágio inferior em relação a São Paulo, que já havia estreado no Brasileiro de 1982 com vitória por 5 a 0 sobre o Treze-PB, não desaprendera a jogar a bola. Também se gabava de nunca ter perdido para o São Paulo desde que assumira o Rubro-Negro.

NOVELA TITA: RENOVAÇÃO CONTRATUAL NÃO SAÍA

As páginas de “O Globo” de 13 a 20 de janeiro de 1982, além da ampla cobertura sobre o encontro de duas verdadeiras seleções, traziam novidades diárias sobre a arrastada renovação entre Tita e o Flamengo. Um dos pilares daquela geração, o atacante, então com 22 anos, não concordava com os termos apresentados pelo clube. Ele queria 1,2 milhões de cruzeiros mensais, enquanto a direção aceitava pagar Cr$ 900 mil.

– O que o Flamengo está me oferecendo é brincadeira. Já reduzi muito a minha proposta e agora só espero que eles reconheçam o meu valor.

Com outra legislação em vigência, Tita fazia de tudo para jogar mesmo sem contrato, algo que era permitido à época. Seu desejo era impressionar Telê Santana e ganhar espaço no grupo que se preparava para a Copa do Mundo de 1982.

– Isso não tem cabimento. Quero jogar. Preciso jogar! Todos sabem da minha disposição de voltar à seleção brasileira e, tenho certeza, só se estiver jogando conseguirei meu objetivo. Esta partida contra o São Paulo é muito importante. Com certeza, o Telê vai assisti-la e preciso estar em campo para provar-lhe que mereço nova oportunidade – completou.

O impasse não foi desfeito antes do jogo, e Tita acabou substituído por Chiquinho no time titular. De quebra, Telê não o convocou. As partes só entenderam em fevereiro, quando o camisa 7 voltou a atuar e se tornou peça fundamental para a conquista do Brasileiro, sacramentada em 25 de abril de 1982.

ZICO REVELA COBRANÇA NO VESTIÁRIO DURANTE O INTERVALO

O Flamengo entrou com Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Chiquinho Nunes e Lico. A escalação do São Paulo foi a seguinte: Waldir Peres, Getúlio, Oscar, Dario Pereyra e Marinho Chagas; Almir, Renato e Everton; Paulo Cesar, Serginho e Mário Sergio.

No País Tropical de Jorge Ben, janeiro é certeza de maçarico ligado. Naquele feriado não foi diferente, e o Flamengo, apesar de habituado ao calor da cidade, sentiu e sofreu. Resultado: só deu São Paulo nos 45 minutos iniciais. Serginho Chulapa marcou aos 14 e aos 40 e poderia ter feito outros dois caso não tivesse perdido oportunidades cristalinas.

Quarenta anos depois, Zico admite que o prejuízo poderia ter sido pior. Como não foi, o vestiário tornou-se o palco da mudança. Muita cobrança para fazer feliz uma torcida que ainda não havia festejado o Mundial diante de seus ídolos.

– Fomos para o jogo. Estava muito quente, tinha muita expectativa, e o time do São Paulo era uma seleção, um timaço. Apesar de entrosados, estávamos fisicamente bem abaixo, e os caras deram um passeio na gente no primeiro tempo. Foi 2 a 0, e a sorte é que eles perderam alguns gols. Vimos aquela torcida, gente pra c…, quase 100 mil pessoas, e todo mundo na expectativa de ver o Flamengo comemorar o título. Chegamos no vestiário e dissemos: “Vamos mudar essa p… aí”.

E mudaram. Da volta do intervalo, apenas uma mudança: o contundido Chiquinho deu lugar a Vitor. Mas o que mudou mesmo foi a postura do Flamengo, avassalador novamente como nos melhores momentos da Geração de Ouro. Aos 12, um golaço de Zico após tabela com Lico. O camisa 10 reapareceu ao ajeitar para Andrade completar com chute seco aos 25 minutos e decretar o empate.

O terceiro gol, marcado aos 36 minutos, foi uma síntese do futebol daquele time. Zico voltou ao campo de defesa para dar um toque de calcanhar a Lico, que entregou para Júnior e passou para receber, fazendo jus ao famoso “overlapping” introduzido por Cláudio Coutinho. Mais uma ultrapassagem, e Lico devolveu para Júnior cruzar com perfeição. Adivinhem quem chegou para testar e decretar o carnaval dos quase 100 mil rubro-negros? O homem que segundos antes estava na intermediária defensiva dando início à jogada. Golaço.

– Ainda bem que o campo inclinou ao nosso favor (risos), fizemos um gol no início, a galera esquentou, e o time começou a jogar, a lutar e a correr mais. Viramos o jogo. O São Paulo até teve oportunidade para aumentar (quando venciam) ou empatar (quando o Fla virou) porque nós nos abrimos, mas foi um jogo inesquecível. Foi demais, realmente emocionante!

Na beira do gramado, o goleiro Raul, a exemplo de José Carlos Francalacci, fez duras críticas ao calendário e valorizou o “coração rubro-negro” acima das fragilidades físicas contra o Tricolor.

– O problema é a falta de ritmo, os jogadores sentiram um pouco. É uma coisa estranha você ficar sem jogar futebol 32 dias num país em que você joga quatro vezes por semana. Isso é quase que fatal para uma equipe. Ainda mais que não tivemos tempo de treinar. Uma semana não é treino, entramos totalmente despreparados. Agora, o Flamengo tem que vencer sempre porque tem uma garra incomum e um futebol maravilhoso. Foi o coração acima do preparo físico – afirmou à TVE.

Foram 85.236 pagantes e renda de Cr$ 26.283.300 em um “dos melhores e mais emocionantes jogos dos últimos anos no Maracanã”, segundo relatou Renato Maurício Prado em sua reportagem em “O Globo”. Uma partida que não valeu taça, mas que ofereceu aos torcedores rubro-negros futebol arte e muita raça. O primeiro ato de um Flamengo irretocável, guerreiro e de outras viradas inesquecíveis no campeonato.

PROVOCAÇÕES E ATRAÇÕES: APOSTA DE SERGINHO E BARRY WHITE NO MARACA

Serginho Chulapa teve de engolir o sarro tirado ainda no intervalo, mas não perdeu a pose. Queria que Raul cantasse o hino do São Paulo por conta dos gols marcados no Maracanã. Reportagens da semana (leia na segunda imagem sobre a renovação de Tita), porém, faziam referência ao vencedor do jogo e não sobre autores de gols. Em tom bem-humorado, o goleiro do Flamengo prometeu (algo que nunca cumpriu) que cantaria futuramente, mas quis mudar as condições do desafio.

– Entrei nessa porque tudo foi proposto por uma revista. O problema é que a aposta era injusta. A princípio pensei que o negócio se resumia na vitória de um dos times. Depois me explicaram que ele ganharia se marcasse um gol. Assim não tem graça. Vou cantar (no jogo da volta, no Morumbi). E tem mais. Vou propor outra aposta. Dessa vez vou colocar o Zico na jogada. Se ele fizer gol, quem canta o hino é o Serginho.

Melhor com o microfone do que Serginho, quem marcou presença no Maracanã pela primeira vez foi o cantor internacional Barry White, conhecido por seu inconfundível tom de voz grave. Até então avesso ao esporte, prometeu voltar outras vezes ao Maraca para torcer pelo Flamengo.

– Que loucura, que festa magnífica! O Rio, realmente, é um show. É exatamente tudo aquilo que sempre imaginei e canto em minha música “Rio” (feita em parceria com Michael Jackson, o autor da letra). Agora virei sempre que puder.

ZICO DESTACA VIRADAS INESQUECÍVEIS NO ANO DO VIRA-VIRA

Depois de terminar o depoimento sobre aquele especial 20 de janeiro de 1982, Zico pontuou que havia algo importante a ser frisado: o ano do vira-vira. O camisa 10 lembra que o Flamengo passava à condição de perseguido, e vencer o campeão mundial tornara-se obsessão dentro do futebol nacional. Por isso, considera o bicampeonato brasileiro como uma das conquistas mais valiosas dos 126 anos do clube.

Quatro dias depois dos 3 a 2 sobre o São Paulo, o Flamengo chegou a estar perdendo por 3 a 1 para o Náutico no Recife, mas conseguiu os 4 a 3 mais uma vez pelos pés do Galinho. Dentro das 15 vitórias no Brasileirão de 1982, sete foram de virada e contra adversários de peso, como Santos, Atlético, Internacional de Porto Alegre (o Fla até abriu 1 a 0, mas levou o 2 a 1 antes de fechar o placar em 3 a 2) e o próprio São Paulo.

– Campeonato dos mais importantes porque o Flamengo era a bola da vez. O Flamengo era o time a ser batido. Os caras vinham com a faca nos dentes, e nós falávamos: “Temos que ir com duas (facas nos dentes)”. A gente sempre saía atrás. Contra o Náutico, estávamos perdendo por 3 a 1 e viramos o jogo. No Morumbi, no outro jogo com o São Paulo, eles saíram na frente, e nós viramos para 4 a 1. Terminou em 4 a 3.

Na semifinal, o Guarani de Careca chegou a abrir 1 a 0, mas Zico respondeu com três gols e garantiu a vitória. Na primeira partida da decisão do Brasileiro, com o famoso “gol de sola” aos 44 do segundo tempo, o ídolo não decretou outra virada, mas decidiu o empate por 1 a 1, que foi fundamental para manter o Flamengo vivo para conquistar o bi no Rio Grande do Sul. Foram três duelos, 1 a 1 no Maraca, 0 a 0 no Olímpico e 1 a 0 para o Fla no derradeiro jogo na casa gremista, com gol de Nunes em passe do Galinho.

– Contra o Guarani, eles saíram na frente, e a gente virou para 3 a 1. Terminou em 3 a 2. O Santos também saiu na frente (nas quartas de final), ganhamos (2 a 1 no Rio) e empatamos (1 a 1 em São Paulo). Na reta final, o Grêmio saiu na frente, e a gente empatou.

LEMBRAR VOCÊ: NEM SÓ DE TÍTULOS VIVE UM CAMPEÃO

Para tirar onda com os rivais, a torcida do Flamengo, numa paródia ao Roupa Nova, canta seus principais títulos nacionais e encerra com o marrento: “Lembrar você, sou campeão mundial”. A mesma música cita que “em 82 o passe foi do Zico”, porém aquele ano não se resume ao jogo do título. Literalmente começa na virada das viradas, contra o São Paulo.

Serginho tirou onda e disse o Tricolor ia “dar um saco neles”. O Flamengo de Jorge Ben respondeu: “Mas que nada, sai da minha frente que eu quero passar”. Como num samba plural, misto de maracatu, e com futebol bonito por natureza, o Flamengo reafirmou-se como realeza.