Conheça brasileiros que vivem a guerra da Ucrânia de perto

Dados do governo norueguês indicam que conflito já deixou cerca de 180 mil mortos ou feridos no exército da Rússia, e 100 mil no da Ucrânia — sem levar em consideração 30 mil mortes de civis.

Um soldado segura uma bandeira ucraniana durante um funeral no cemitério de Lviv, oeste da Ucrânia, na terça-feira, 21 de fevereiro de 2023. — Foto: AP Photo/Petros Giannakouris

Um soldado segura uma bandeira ucraniana durante um funeral no cemitério de Lviv, oeste da Ucrânia, na terça-feira, 21 de fevereiro de 2023. — Foto: AP Photo/Petros Giannakouris

Em 2022, a RFI conversou com brasileiros que estavam na Ucrânia no momento em que a guerra começou e agora, um ano depois, voltou a falar com eles para contar suas histórias. A reportagem também entrevistou um brasileiro que estava no Brasil em 24 de fevereiro de 2022 e, mesmo sem nenhuma experiência anterior no exército, resolveu que deveria ajudar o país comandado por Volodymyr Zelensky a vencer esta guerra.

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Para boa parte do mundo ocidental, a guerra começou no dia 24 de fevereiro de 2022, quando o presidente russo, Vladimir Putin, após meses de ameaça, ordenou a invasão da Ucrânia. Meses antes, em julho de 2021, no famoso discurso de São Petersburgo, o chefe de Kremlin chegou a declarar que Rússia e Ucrânia eram nações irmãs: “Juntos, nós sempre tivemos e teremos muito mais força e sucesso. Porque nós somos um mesmo povo”, disse.

Para os ucranianos, no entanto, esta invasão começou muito antes, no início de 2014, quando a Federação russa invadiu e anexou a península da Criméia. Naquele ano, a jovem poeta ucraniana Anastasia Dmytruk escreveu: “Nós jamais seremos irmãos; nem de mesma pátria, nem de mesma mãe”.

Porém, apesar das constantes ameaças, os ucranianos de Kiev e de outras regiões mais afastadas da fronteira com a Rússia continuavam levando uma vida normal. David Abu-Gharbil, natural de Minas Gerais, é engenheiro eletricista e estava na capital, Kiev, para onde tinha ido quatro meses antes para estudar Medicina. A guerra o pegou o brasileiro de surpresa. 

Ninguém falava de guerra

“Conversando com o pessoal lá, ninguém tinha medo de guerra. Então a gente estava tranquilo. Inclusive, quando a guerra começou, eu trabalhei até 1h da manhã; na madrugada do dia 23 para o dia 24 de fevereiro. Cheguei em casa à 1h30 e acordei às 4h30 com um barulho de bomba, sem saber o que tinha acontecido. Foi mais ou menos assim. A guerra começou ‘do nada’. Estava todo mundo trabalhando e vivendo a sua vida normalmente; ninguém falava em guerra. E daí simplesmente a guerra começou, isso que foi muito pesado”, conta o brasileiro.

“Para os ucranianos com quem eu conversava, não ia haver guerra, era só uma ameaça mesmo. Se eles estavam tranquilos, por que eu não estaria?”, relata David, que, depois de meses no Brasil, mudou-se neste mês para a República Tcheca. 
O engenheiro David Abu-Gharbil voltou ao Brasil, depois de dias tentando fugir de Kiev. Em fevereiro, ele voltou para a Europa e agora mora e trabalha na República Tcheca — Foto: Arquivo Pessoal

O engenheiro David Abu-Gharbil voltou ao Brasil, depois de dias tentando fugir de Kiev. Em fevereiro, ele voltou para a Europa e agora mora e trabalha na República Tcheca — Foto: Arquivo Pessoal

Se a decisão de Putin foi abrupta ou não, talvez nunca tenhamos a confirmação. Mas ela foi anunciada ao mundo desta forma, pelo chefe do Kremlin: “Tomei a decisão de realizar uma operação militar especial”. Com estas palavras, o presidente russo iniciou, em 24 de fevereiro de 2022, a invasão da vizinha Ucrânia, desencadeando o pior conflito no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

Em um contexto de tensões crescentes com o Ocidente, o presidente russo fez o anúncio surpresa pela televisão pouco antes das 6h da manhã, hora local, (meia-noite de Brasília). O objetivo, dizia Putin, era a “desmilitarização e desnazificação da Ucrânia“, reiterando as acusações infundadas de um “genocídio” orquestrado pela Ucrânia no leste russófono do país e denunciando uma política “agressiva” da Otan.

Vídeos da guerra no Facebook

Enquanto David vivenciou a guerra desde a sua primeira hora, em Kiev, um outro brasileiro acordou no Espírito Santo e se deparou com a notícia do conflito por meio de vídeos no Facebook. Também pego de surpresa, o então vendedor amapaense Ezequiel Silva fez o caminho inverso de David e seus amigos, que precisaram voltar para o Brasil. 

“Em 24 de fevereiro de 2022, eu estava na minha casa, deitado, curtindo a minha vida. Então eu abri o Facebook e vi um vídeo mostrando que a Rússia estava invadindo a Ucrânia. A partir daquele momento, eu já comecei a me planejar para vir pra cá.”

“Eu decidi lutar pela Ucrânia porque, na minha concepção como ser humano, todos nós temos o direito de viver em paz e trabalhar na terra que foi dada por Deus. Eu não concordo com esta invasão e por isso resolvi lutar pela Ucrânia“, conta o hoje soldado do exército ucraniano. 
O amapaense Ezequiel Silva, hoje com 22 anos, saiu do Brasil para ir lutar pela Ucrânia pouco depois do começo da guerra. Ele participou da linha de frente em Kharhiv. Na farda militar, ele exibe as bandeiras ucraniana e brasileira. — Foto: Arquivo Pessoal

O amapaense Ezequiel Silva, hoje com 22 anos, saiu do Brasil para ir lutar pela Ucrânia pouco depois do começo da guerra. Ele participou da linha de frente em Kharhiv. Na farda militar, ele exibe as bandeiras ucraniana e brasileira. — Foto: Arquivo Pessoal

Ezequiel, que tinha apenas 21 anos e nunca havia servido ao Exército brasileiro nem tinha saído do país. O jovem viajou para a Europa sem contatos, sem convocação nem contrato, mas com um único objetivo: ajudar o povo ucraniano a vencer esta guerra, que ele considera injusta. Na Polônia, ele encontrou, por meio de um grupo de Whatsapp, outros dois brasileiros que queriam ser voluntários na guerra e, juntos, seguiram para a Ucrânia

“Foi muito complicado entrar na Ucrânia, porque a gente não tinha nenhum papel de convocação das Forças Armadas ucranianas, nada. Na fronteira entre a Polônia e a Ucrânia, os militares nos pararam, pegaram os nossos passaportes, fizeram um monte de perguntas, por pelo menos uma hora. A gente falou que estava indo se apresentar na legião internacional. Eles pediram um documento de comprovação e a gente falou que não tinha. Para a nossa sorte, eles nos deixaram passar”, disse. 

Se a entrada na Ucrânia em guerra não era fácil, o caminho inverso era muito mais difícil. 

Lição de vida

Em março de 2022, a RFI entrevistou um grupo de brasileiros que ficaram presos em Kiev, porque não conseguiam um meio de transporte para deixar o país. Até que, depois de muitas tentativas, a Embaixada do Brasil na capital conseguiu um carro particular que os levou a Lviv, na fronteira com a Polônia. 

O jogador de futsal Matheus Ramires fazia parte deste grupo e voltou para o Brasil no vôo de repatriação da FAB, que saiu de Varsóvia, capital da Polônia, no dia 9 de março, depois de ter vivido apenas 40 dias na Ucrânia, onde tinha ido para jogar no clube Skyup de Kiev.

Matheus Ramires, de camisa laranja, quando jogava em Kiev. Ele voltou ao Brasil no voo da FAB em março de 2022. — Foto: Arquivo Pessoal

Matheus Ramires, de camisa laranja, quando jogava em Kiev. Ele voltou ao Brasil no voo da FAB em março de 2022. — Foto: Arquivo Pessoal

“Já faz um ano, mas parece que foi há pouco tempo que estávamos tentando sair de Kiev. Eu acompanho pela televisão e fico triste de ver que o conflito segue. Eu estou bem, tive que reiniciar a vida aqui no Brasil. Graças a Deus as perdas foram somente materiais, então consegui recomeçar aqui”, conta. 

Apesar do trauma de ser recém-chegado num país que acabava de ser atacado, Matheus Ramires conseguiu guardar boas lembranças da Ucrânia.

“Eu deixei muitos amigos em Kiev e voltaria para lá no futuro. Todos os ucranianos da minha equipe eram pessoas do bem, com quem tenho contato até hoje. Fico muito triste por eles. O que me ficou na memória foi, principalmente, o jeito como o povo ucraniano lidou com a guerra. O mundo de muitas famílias estava se acabando e ainda assim as pessoas com gestos bonitos, de solidariedade, que vão ficar sempre na minha memória. No momento mais difícil, eles ainda tinham estes gestos”, disse.

“Esse foi o maior aprendizado que eu tive desta guerra, de ver que pessoas, nos piores momentos de suas vidas, continuaram sendo gentis, educadas. Eu tirei muitas lições daquele momento. Claro que é uma pena por ser uma guerra, então a gente não fica feliz. Mas eu queria de coração agradecer todos os momentos que passei ali e todos os aprendizados que tive com os ucranianos. Foi uma lição de vida”, continua. 

Luta para ficar

Enquanto alguns de seu grupo voltaram para o Brasil no voo da FAB, com 45 brasileiros a bordo, outros resolveram ficar na Europa para tentar recomeçar a vida em outros países.

Foi o caso de David Abu-Gharbil, que ficou entre a Polônia e a República Tcheca, e também do jogador de futsal Moreno Santiago, que jogava no time Skyup de Kiev, e conseguiu um time na Alemanha, onde ficou por nove meses, antes de se mudar para Montpellier, no sul da França, onde está até hoje. 

“Foi uma loucura aquilo ali, mudou todos os nossos planos, eu fiquei meio sem saber o que fazer [quando a guerra começou], porque foi tudo muito rápido. Como eu jogo futsal, fiquei meio sem ter o que fazer. A gente foi retirado do país, foi para a Polônia, para ser repatriado, mas eu decidi ficar porque tinha a possibilidade de jogar aqui na Europa. A janela de transferência ia ser aberta para os jogadores que saíam da Ucrânia e eu aproveitei esta oportunidade e fui para a Alemanha”, conta ele.

“No final de 2022, eu tive um convite para voltar para a Ucrânia, para o mesmo time em que eu jogava quando a guerra começou. Eles voltaram a jogar e está tendo campeonato. Mas eu botei na balança e achei meio arriscado ainda. Eu tenho amigos que estão morando lá, passando por situação difícil. Um tomou um tiro e na virada do ano houve muitos ataques… Então decidi não voltar ainda, por mais que eu goste muito deste país”. 

Médico em tempos de guerra

O médico brasileiro Rony de Moura, num hospital em Kiev. — Foto: Arquivo Pessoal

O médico brasileiro Rony de Moura, num hospital em Kiev. — Foto: Arquivo Pessoal

Se Moreno ficou na Europa, o médico goiano Rony de Moura, que estava no final da Faculdade de Medicina em Kiev quando a guerra começou, faltando apenas uma prova para se formar, não conseguiu transferir seu curso para nenhuma outra faculdade europeia e teve de voltar para o Brasil. Mas alguns meses atrás ele fez o caminho inverso : voltou para  a Ucrânia, se formou em Medicina, e hoje trabalha como cirurgião em dois hospitais em Kiev, onde presta assistência em cirurgias executadas por seus ex-professores. Seu cotidiano agora é operar os feridos de guerra.

“A maioria dos pacientes chega a mim já anestesiados e sedados, prontos para a cirurgia, então dou uma assistência para os doutores que comandam a cirurgia. A grande maioria dos pacientes veio da guerra, com ferimento por bala, explosões, precisando de amputação…”. 

Assim como Moreno Santiago, que já morou em Moscou e tem uma filha e uma ex-mulher que ainda vivem na capital russa, Rony de Moura começou o seu curso no país que viria a invadir a Ucrânia. Ele inclusive presenciou isso desde o início, em 2014.

“Eu comecei a estudar na Rússia, em 16 de março de 2014. No caminho de Moscou para Kursk, eu vi vários comboios de tanques, helicópteros e material militar. Em 18 de março daquele ano, a Rússia tomou a Crimeia, então eu comecei neste conflito já naquela época, no país invasor”, relembra. 

Um dos pacientes de Rony, a quem ele acompanha à distância, porque se tornaram amigos, é também brasileiro. O soldado Ezequiel Silva, lutou por meses na linha de frente em Kharkiv, no nordeste do país, quando o carro em que ele estava, com outros cinco soldados, saiu da rota no meio da noite e passou por cima de uma mina terrestre colocada pelos russos. O carro explodiu e deixou todos feridos. 

“No dia 7 de setembro de 2022, a gente estava em campo, em Kharkiv, com o nosso veículo e, em algum momento, a gente saiu de rota e o nosso carro passou por cima de uma mina. Nosso carro explodiu e a gente teve alguns ferimentos graves. Eu estou em Kiev, tive de passar por duas cirurgias e estou há meses no hospital, mas já estou bem melhor”, relata o soldado. 

Inverno rigoroso e perdas humanas

Além disso, Ezequiel passou por muitos momentos difíceis na guerra, como um frio de 20 graus negativos: “O inverno aqui é complicado, castiga a gente, ainda mais os brasileiros. Na linha de frente, peguei o maior frio da minha vida”, conta. 

A partir de outubro, a Rússia atacou sistematicamente usinas e transformadores ucranianos com seus mísseis e drones, mergulhando a população no frio e na escuridão.

Mas, para ele, o pior desta guerra não é o seu ferimento nem as dificuldades da linha de frente.

“A parte mais difícil, na guerra, é perder os meus irmãos”, diz, referindo-se aos colegas soldados.

“Não é um bombardeio, não é uma ofensiva, é perder os nossos irmãos.”

No início de setembro, o exército ucraniano anunciou uma contra-ofensiva no sul, antes de fazer um avanço surpresa e relâmpago contra as linhas russas no nordeste, o que força o exército de Moscou a se retirar da região de Kharkiv, palco de combates violentos.

No sul, a operação visava retomar Kherson, a única capital regional que caiu nas mãos das forças russas no início da invasão. Passo a passo, o exército ucraniano, com sistemas de armas ocidentais, tomou dezenas de cidades, bombardeando incansavelmente depósitos de munição e linhas de abastecimento russas na região.

A ponte da Crimeia, um símbolo forte, foi danificada por uma explosão poderosa em 8 de outubro.

Fim do conflito?

David relembra as cenas tristes que viu nos seus últimos dias na Ucrânia. “Espero que esta guerra acabe o quanto antes, porque os ucranianos não têm nada a ver com isso e é só tristeza.”

“Eu vi escombros, vi crianças atravessando a fronteira sem família, criança de cinco anos, só com um ursinho na mão, chorando. Eu passei por fases em bunkers, onde via bebês, pessoas inocentes, vi soldados que diziam que não queriam estar nesta guerra.”

“Foi muito difícil… Foi um ano em que eu aprendi muito também.”

O soldado Ezequiel, que pretende continuar na Ucrânia quando sair do hospital, aposta em um fim para o conflito, com vitória para a Ucrânia, ainda este ano, com a promessa de envio de tanques por países membros da Otan.

“Está um pouco difícil, para nós, agora, porque os russos estão muito bem instalados nas regiões que eles tomaram, mas creio que, com este envio de equipamentos, as nossas chances de vitória aumentam. Não em um curto prazo, mas creio que até o final deste ano a guerra tenha acabado”, prevê. 

Diante dos repetidos pedidos do presidente ucraniano e depois de terem hesitado durante muito tempo por medo de provocar uma escalada, os americanos e os europeus autorizaram o envio de dezenas de tanques pesados para Kiev, despertando a ira de Moscou.

Rússia e Ucrânia não apresentam um balanço confiável de suas perdas há meses. Segundo a Noruega, a guerra na Ucrânia causou cerca de 180.000 mortos ou feridos nas fileiras do exército russo, e 100.000 ucranianos, sem levar em consideração as 30.000 mortes de civis.

Todos os entrevistados disseram à reportagem da RFI que sonham com o fim desta guerra, que já deixou milhares de mortos e milhões de refugiados. 

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